Com a pandemia, famílias em vulnerabilidade social não tem mais certeza se terão acesso às refeições básicas

Por Rafaela Rosa

Notícia publicada no Diário Popular em 27 de maio de 2020. Disponível em: https://www.diariopopular.com.br/geral/a-unica-certeza-e-a-duvida-151490/?fbclid=IwAR2zmhCYgNXQ0h-NmpruPgHiYfXDG631W2gwK9QGOKVM3L1wIJmu1Hfw0E8

Andressa e Rossicler têm algo em comum: ambas habitam em regiões da cidade em que a assistência é pouca e a falta, é grande. A primeira mora com dois filhos na Estrada do Engenho e a renda é o Bolsa Família. A outra, é mãe de duas meninas e um menino, todos residem na Barão de Mauá. A renda é um auxílio doença. Em tempos de pandemia, ambas estão lidando com a insegurança de não saber se terão acesso a um direito constitucional: à alimentação.

Andressa Soares tem 24 anos e em duas peças construídas com madeira ela cria os pequenos Victor e Luiz Henrique. Por lá não falta amor, mas falta material para evitar que a água tome conta da casa em dias de chuva, falta emprego para que ela consiga ter uma renda fixa. De sobra tem a incerteza. Pois a dona de casa não sabe se poderá servir arroz e feijão aos pequenos todos dias. Com a pandemia o valor do Bolsa Família aumentou, mas mesmo assim as dificuldades seguem. “A gente recebe doações, mas não é sempre”, disse.

Enquanto a reportagem conversava com a família, um casal praticava seu novo hábito: entregar viandas aos mais vulneráveis. A jornalista Camila Mattos conta que há cerca de um mês, três vezes por semana, eles distribuem almoço aos que precisam. “Andamos pela cidade, entregamos aos moradores de rua e em bairros mais esquecidos”, relatou. Para fabricar as mais de cem refeições semanais eles contam a contribuição da família e dos amigos. “Estamos sempre recebendo doações”, disseram. O pequeno Luiz Henrique não perdeu tempo e logo foi apreciar o prato do dia que era arroz, feijão e massa com guisado.

Local diferente, inseguranças iguais

A distância física entre Andressa e Rossicler é de cerca de cinco quilômetros. Entretanto, os anseios e as lutas diárias são semelhantes, mesmo sem se conhecerem. Rossicler Silva, 47 tem três filhos e há dois anos luta contra um câncer no intestino. Diversas cirurgias e uma bolsa de colostomia são as marcas de um passado não muito distante na trajetória de quem batalha diariamente pela vida. Além da casa dela, o terreno também abriga um chalé – revestido com caixas de leite – da mãe, Ana, uma idosa de 77 anos. A alternativa com o material tetra pak visa diminuir a umidade e a entrada de água das chuvas, mas com as fortes precipitações da última semana a casa acabou enchendo.

Rossicler é doméstica, mas desde que descobriu a doença está parada. “Minha renda diminuiu muito”, lamentou, explicando que agora conta apenas com o auxílio doença, que é de um salário mínimo. Com a pandemia, ela diz que teve a sensação que mais dificuldades apareceram. “É problema no esgoto, na luz, juntou tudo”, desabafou e questionou: “A quem recorrer?”, emocionada. No atual cenário, Rossicler depende exclusivamente de doações para conseguir alimentos. Através da Unidade Básica de Saúde (UBS) onde faz seu acompanhamento médico conseguiu uma cesta básica doada pela Secretaria de Assistência Social (Sas), também conta com a boa ação de pessoas que assim como Camila distribui refeições pela cidade. Quando as doações começam a ficar escassas o jeito é adiar algumas dívidas e recorrer aos vizinhos e parentes em busca de algum auxílio. “Vou me desdobrando”.

Pode faltar diversos itens materiais e essenciais para a família Silva, mas tornar-se forte foi uma das coisas que todos aprenderam com Rossicler. A rotina das quimioterapias segue e de 15 em 15 dias, a doméstica desloca-se até o Ceron para dar mais um passo no tratamento. Com esperança de um futuro melhor, ela garante que a dor que sente não é mais física. “Eu já passei por tanta coisa, que o problema maior é a dor que vem de dentro”. Devido a doença, os dias oscilam. Em uns a vontade de viver acorda com ela “e já trato de passar uma maquiagem, arrumar a casa”, em outros os efeitos do tratamento vencem e o único desejo é ficar deitada. “Um dia de cada vez”, disse, chorando, abraçada no filho mais novo.

Direito Constitucional

Conforme explica a professora da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e integrante da coordenação do Fórum em Defesa da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional de Pelotas, Cristine Ribeiro, a alimentação saudável é definida na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal como um direito.

O Fórum é composto por várias entidades e movimentos sociais do município e da região e hoje ele está envolvido em duas frentes de trabalho. A primeira é uma frente histórica construída pelo Fórum para a consolidação do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comsea) que foi legitimado este ano, através de duas planárias. “Hoje a gente consegue a consolidação do Conselho, com 14 cadeiras da sociedade civil e sete do poder público”, disse Cristine. A outra frente de trabalho é a campanha de arrecadação de alimentos no tempo que durar a pandemia. Quem quiser colaborar pode doar qualquer valor através de depósito no Banrisul, agência: 0320, conta: 06.113347.0-6 – Aducpel. O recurso é destinado para compras na agricultura familiar, na reforma agrária ou quilombola.Com isso, 120 famílias já foram assistidas e uma tonelada e meia de alimentos saudáveis distribuídos em bairros como Balsa, Barro Duro, Cohab Tablada, Doquinhas, Dunas, Getúlio Vargas, Navegantes e Pestano.

A luta pelo Comsea e pela campanha de arrecadação é pautada em dois princípios: o da soberania alimentar, que tem o objetivo de garantir o conhecimento e o fortalecimento da produção local e regional dos alimentos e o da segurança alimentar, “que enquanto política de estado sofreu um desmonte a nível nacional, mas que continua acontecendo nos estados e nos municípios”, frisou a docente. Esses dois princípios também lutam para que a periferia tenha o direito de acessar um alimento saudável, já que ele não deve ser relegado a uma classe. “Se a periferia ainda não tem condições de comprar esse alimento, que exista políticas públicas de incentivo ao acesso dessa alimentação, tanto no que se refere a merenda escolar, quanto através de instituições assistenciais e de saúde, mas que seja um alimento resultado dessa aliança”, afirmou.

O Comsea já pautou a necessidade de criar uma comissão para mapear os alimentos que são distribuídos no município pela gestão e também qual a origem desses mantimentos, assim respeitará os princípios da soberania e segurança. “Hoje a gente desconhece a população que vive em segurança alimentar no município”, completou, contando que já ocorreram reuniões para iniciar essa identificação. O objetivo é garantir que a periferia tenha acesso aos dois princípios. “A gente tem informações de pesquisas que a má nutrição produz obesidade, problemas cardíacos e diabetes e essas comorbidade estão relacionadas ao direito ao acesso a alimentos saudáveis”

O papel da SAS

Desde o final de março a Secretaria de Assistência Social percebeu um aumento na procura dos serviços. Conforme conta o secretário, Márcio Sedrez, em 2018 a pasta comprava seis mil cestas básicas para conseguir distribuir 500 por mês. Em 2019, o número dobrou e 12 mil foram adquiridas, assim eram mil famílias assistidas mensalmente. Com a pandemia – entre 20 de março e 25 de maio – sete mil cestas já foram distribuídas. “Pessoas que nunca procuram o serviço tiverem que recorrer”, contou o responsável pela pasta. As sete mil foram distribuídas através dos Cras,Creas, mutirões, plantão social e entidades que têm convênio e acabam solicitando o serviço, como escolas rurais.

Quanto aos critérios utilizados para a distribuição de cestas básicas, é necessário o usuário fazer um cadastro básico com as assistentes sociais, seja nos Cras,Creas, plantão social ou mutirões realizados pela Sas em zonas mais distantes. “É já é atendido com a cesta básica. Este cadastro é lançado em um sistema e todas equipes técnicas têm acesso para evitar que o indivíduo retire mais de uma cesta por semana”, completou. O município conta com 28 mil famílias com perfil de Cadastro Único (CadÚnico) – até 3 salários mínimos por família – e cerca de 70 mil indivíduos e 9.500 famílias no cadastro do Bolsa Família. Esse público acabava sendo o alvo da Sas, mas com a crise sanitária o cenário mudou. “Não é necessário ser CadÚnico ou Bolsa Família para procurar a Sas”, salientou Sedrez.